quinta-feira, 6 de setembro de 2012

“Você quer me comer”? Os extremos da liberdade e do desejo humanos


Gilberto Gawronski em Ato de comunhão - foto: Paulo Severo

Por Uendel de Oliveira 

Ir ao teatro para assistir a uma sessão do espetáculo Ato de comunhão, construído a partir do texto do argentino Lautaro Vilo, é um ato de coragem. A vivência propiciada pelo solo concebido pelo ator Gilberto Gawronsk, em codireção com Warley Goulart, faz o espectador, no mínimo, refletir sobre desejo e liberdade. O ator narra a história real de um homem mediano que, em 2001, na Alemanha, matou e literalmente devorou outro homem, a pedido deste, registrando tudo em vídeo.

A plateia fica sobre o espaço cênico, próxima ao ator, vendo de perto as evoluções e ações do personagem. O cenário é relativamente simples, composto por poucos objetos que são manipulados pelo ator ao longo do espetáculo, assumindo funções diversas. O uso desses elementos propicia, aliás, alguns dos momentos mais marcantes, como quando uma moldura espelhada que, incialmente, representava uma janela, é transformada num caixão pela ação do personagem. O poder de sugestão da cena, aliada à imaginação da plateia, possibilita ao espectador de fato acreditar na presença de um corpo sendo velado naquele palco.

O personagem interpretado por Gawronski atua muito mais como um narrador da própria história do que como alguém que representa situações. Ele compartilha a narração, inclusive, com ele mesmo, já que a voz do ator, gravada, também conta a história. Aliás, a narração transita ora pela voz viva do ator fisicamente presente, ora pela voz gravada, ora por ambas simultaneamente. Ao mesmo tempo em que esse jogo de narração em duas vozes – que é uma só, no fim das contas – possibilita momentos interessantes de liberdade para que o ator presentifique em cena os estados emocionais do personagem, também produz outros momentos menos interessantes. São instantes em que as ações do personagem simplesmente reproduzem o que está sendo narrado, tornando a cena redundante.

O espetáculo recorre ao uso de projeções diversas, ora fixas, ora móveis, que por vezes apenas ilustram as situações narradas. No entanto, há momentos pontuais em que as projeções metaforizam as emoções do personagem, instantes que desestabilizam o espectador e o surpreendem. É o que acontece, por exemplo, quando o personagem narra em detalhes o que fez com o corpo esquartejado do homem que devorou, enquanto um monitor exibe imagens de órgãos e atos sexuais, remetendo ao universo complexo dos desejos humanos.

E, apesar das ressalvas, é exatamente o modo como aborda a questão do desejo que faz de Ato de comunhão um espetáculo verdadeiramente mobilizador. A obra põe em cena, de maneira corajosa, uma história sobre o exercício extremo da liberdade e da satisfação absoluta dos mais recônditos desejos, tirando o público do conforto de suas certezas, ao mesmo tempo em que provoca uma estranha identificação. Afinal, muitos cidadãos normais, trabalhadores e com rotinas entediantes, alimentam desejos inconfessáveis, enterrados nas profundezas da própria intimidade.

Uendel de Oliveira é doutorando e Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas / UFBA – Universidade federal da Bahia; dramaturgo e professor de teatro. Autor do blog: falandosobrecenas.blogspot.com; uendel.silva@hotmail.com

(Texto produzido como exercício para a oficina Cultura da Crítica, no âmbito do FILTE. Não posuui caráter valorativo).

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