quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Devora-me que decifro-te!


Gilberto Gawronski em Ato de comunhão - foto: Paulo Severo

Por Poliana Bicalho

Convido o leitor a adentrar o universo do espetáculo Ato de comunhão, do performancer e diretor artístico Gilberto Gawronski (Rio de Janeiro), a partir de tais questionamentos: “O nosso corpo realmente nos pertence? Quais os limites do desejo?”

A história do personagem é contada a partir de três episódios aparentemente alheios e comuns a qualquer sujeito: a festa de aniversário de 8 anos; a morte da mãe; o estar só e a tentativa de minimizar este sentimento por meio da extensiva conexão à rede mundial de computadores. No entanto, o terceiro episódio possui um desenrolar inesperado, no qual o limite do ficcional e do real torna-se tênue.

A opção do texto em off, no qual em determinados momentos o ator sublinhava algumas palavras, imprime à encenação um ritmo vagaroso, sendo instaurada uma atmosfera de apatia. No entanto, este recurso duplicou a presença deste ator no palco que dialogava consigo no desejo de ser o Outro.

O espectador acompanha e aguarda que algo de inusitado dê um sentido àquela narração banal e que aponte indícios para um ato de comunhão: eis que isso ocorre, ao ser minimamente detalhado os antecedentes e o durante do ato antropofágico daquele personagem.

Existe uma atemporalidade nos aspectos visuais do espetáculo. Objetos antigos como a pequena cômoda com espelho, o cabideiro, a cadeira do barbeiro, a ribalta, dialogam com as projeções de imagens familiares, paisagens, páginas da internet e com a câmera que está na cena que se torna testemunha dos acontecimentos ali ocorridos. Esta suspensão do tempo e do espaço salienta que questões da existência humana são atemporais e afetam todos os homo sapiens.

Registra-se ainda a ressignificação dos elementos que compõe a cena. A cadeira de barbeiro, que se torna pá para o enterro, que se torna cadeira de condenação. Ë importante salientar que não existe exagero na composição da cena e tampouco pobreza. Tudo está ali claramente exercendo funções funcionais e simbólicas dentro da narrativa.

O espetáculo possui o texto como seu principal elemento da encenação, de autoria do argentino Lautaro Vilo. Altamente descritivo, minimalista, sensorial e com um desfecho que realmente surpreende. No entanto, é preciso registrar que, além da precisão técnica do ator, existe uma honestidade na cena, possibilitando que esta história não seja contada na dimensão da espetacularização do ato ‘animalesco’, mas que seja reverberado para a platéia o pensar sobre o corpo e sobre desejo que nos move, que nos faz viver e/ou que nos mata.

Condenar o personagem é suprimir o desejo de liberdade, mesmo que saibamos este corpo está atravessado por forças que o coagem e que o castram. Contudo, aquela encenação que ocorreu no espaço Cultural da Barroquinha (Salvador/Bahia), arquitetura de antiga igreja, nos convida a repensar sobre o enigma da esfinge grega na sua honesta incoerência.

Poliana Bicalho é formada em Jornalismo e Licenciatura em Teatro, atua como produtora cultural freelancer e atualmente é professora da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia. E-mail: polianabicalho@yahoo.com.br

(Texto produzido como exercício para a oficina Cultura da Crítica, no âmbito do FILTE. Não posuui caráter valorativo).

 

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