quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O corpo que habita outro corpo


Eduardo Okamoto em Agora e na hora... - foto: João Roberto Simioni


Por Uendel de Oliveira 

Assistir ao espetáculo Agora e na hora de nossa hora, solo concebido e executado por Eduardo Okamoto, com Verônica Fabrini na direção, é testemunhar a experiência de transformação corporal de um sujeito em outro. Okamoto se metamorfoseia num menino de rua, sobrevivente e testemunha da conhecida chacina da candelária, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, em 1993, quando um grupo de extermínio executou durante a madrugada vários meninos de rua, próximo à Igreja da Candelária. E a experiência de fruição tem início mesmo antes do espetáculo começar, já que a plateia sobe no palco, onde o artista já está, escutando músicas que remetem ao universo ao qual pertence o protagonista.

Não há uma narrativa linear sendo contada. Okamoto opta por trazer à cena momentos marcantes característicos da rotina de um menino que vive nas ruas de uma grande cidade brasileira qualquer. Porém, não se trata de um espetáculo com proposta realista; são exploradas as dimensões mais subjetivas do personagem, embora existam os paralelos necessários com a dimensão da realidade à qual o espetáculo se refere. Por exemplo, vê-se o personagem falar de seus temores, paixões, sentimentos religiosos, da mesma forma como se vê os momentos em que ele tem fome e aqueles durante os quais está sob o efeito de drogas, situação comum entre jovens de rua.

O cenário é desenhado com pedras espalhadas pelo chão numa forma que remete a uma cruz, de maneira que toda a ação do personagem parece se desenvolver à sombra desse símbolo cristão. Cria-se um contraste interessante entre a situação brutal representada no espetáculo e a expectativa de proteção que normalmente se tem em relação ao Deus cristão, ali metaforizado pelo símbolo cruz. Há, no espetáculo, espaço para as paixões do menino, suas obsessões, manias, afetos, elementos que aparecem nas referências que ele faz aos seus companheiros da rua e a uma menina por quem ele parece nutrir uma relação de desejo e respeito, ao mesmo tempo. Há, também, momentos que trazem imagens de grande beleza plástica e simbólica, como quando Okamoto se despe de parte do figurino, depositando-o no chão. Nesse momento, ele se despe do personagem e cria um quadro que sugere, com sutileza, a morte daquele menino, depois de momentos vividos em solidão e abandono.

De fato, o grande destaque do espetáculo é o excelente trabalho de construção de personagem desenvolvido por Okamoto. Ele demonstra domínio sobre o ofício e oferece um desempenho corporal magnífico, que gera a sensação de se estar diante de um corpo habitado por outro, com voz e respiração próprias, e que aparece diante da plateia e desaparece no momento exato em que precisa desaparecer, deixando suas reminiscências na memória do espectador seduzido por aquela presença efêmera.

Uendel de Oliveira é doutorando e Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas / UFBA – Universidade federal da Bahia; dramaturgo e professor de teatro. Autor do blog: falandosobrecenas.blogspot.com.

(Texto produzido como exercício para a oficina Cultura da Crítica, no âmbito do FILTE. Não posuui caráter valorativo).

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